Introdução: O que a filosofia é
Eis uma coisa que o leitor deve sempre evitar tentar explicar. Mas pode desejar ficar com duas coisas claras desde o início.
Em primeiro lugar, a filosofia não é um assunto — é uma atividade. Consequentemente, não se estuda: faz-se. É assim que os filósofos, pelo menos os da tradição anglo-saxônica (que por qualquer razão histórica obscura parecem incluir os finlandeses), têm tendência para pôr a coisa. Em segundo lugar, a filosofia é em grande parte uma questão de análise conceptual — ou seja, pensar sobre o pensamento. Por agora, limitemo-nos ao mais básico.
Isto é algo que no sentir de alguns filósofos é impossível, mas não há razão para o leitor lhes seguir o exemplo. Para o visitante casual que observa rapidamente a paisagem, a filosofia parece desconcertantemente difícil. Uma das suas maiores dificuldades é o fato de os filósofos, salvo raras e honrosas exceções, acharem praticamente impossível usar uma linguagem compreensível para as pessoas comuns, como por exemplo, o português. Acontece até que quando um filósofo quer referir-se à Pessoa Comum (uma espécie que é improvável que ele tenha conhecido em primeira mão, apesar de poder ter ouvido lendas de viajantes acerca dela), usa a expressão “o homem que apanha a carreira 45 para a Damaia”, aparentemente sem se dar conta de que já ninguém usa a palavra “carreira”, exceto para referir o percurso vicioso dos políticos, nem que a Damaia já não é também o exemplo ideal da mediocridade suburbana lisboeta.
A sua tarefa, portanto, é alcançar pelo menos uma tênue compreensão do mais profundo alcance do vocabulário técnico, tal como é usado, de forma tão enigmática, pelo filósofo contemporâneo. Não se preocupe. A competência linguística, tal como o segundo Wittgenstein teria dito (que não deve confundir-se, é claro, com o primeiro Wittgenstein, que não diria tal), é uma questão de pôr as palavras na ordem certa. O leitor não terá realmente de compreender que quer dizer a maior parte disto, se é que quer dizer alguma coisa.
A atitude correta em relação à History of Western Philosophy de Russell é elogiar o seu estilo, lucidez e humor, ao mesmo tempo que se manifestam algumas reservas quanto ao seu conteúdo: “Uma leitura maravilhosa, claro, mas não pensas que é um pouco tendenciosa?” A expressão “não pensas” faz parte de uma pergunta de retórica e nunca deve ser tomada literalmente.
Talvez o mais influente encontro filosófico ocorrido antes da Primeira Guerra Mundial tenha sido o que ocorreu em 1912, quando (o Jovem) Wittgenstein se encontrou com Russell em Cambridge e lhe perguntou (a Russell) se ele (o Jovem Wittgenstein) era um completo idiota; é que, se acaso o fosse, iria para piloto de aviões. Russell disse-lhe que escrevesse qualquer coisa; o Jovem Wittgenstein assim fez, Russell leu uma linha e disse-lhe que ele era demasiado esperto para ser um aviador.
A guerra interrompeu a carreira do Jovem Wittgenstein em Cambridge, mas regressou depois disso já como Primeiro Wittgenstein, passando a dominar a vida filosófica de Cambridge, e não só, durante os trinta anos seguintes. Sendo uma personagem encantadoramente excêntrica, apaixonado por filmes medonhos, vivia numa cadeira de espaldar debaixo de um aquecedor elétrico, num quarto do Trinity College, que fora isso estava completamente vazio. Publicou um único livro em toda a sua vida, o Tractatus Logico-Philosophicus, no qual trata de problemas como a estrutura da proposição, a questão de saber como tem a linguagem significado, assim como as noções de verdade e de falsidade.
As suas investigações fizeram-no acreditar que só as proposições construídas através das conectivas lógicas a partir de proposições atômicas tinham sentido. Daí o nome “Atomismo Lógico” que designa este tipo de filosofia. Tudo o resto não tinha literalmente sentido, o que nos livra da metafísica, juntamente com muitas outras coisas. Na verdade, tem a consequência infeliz de fazer com que quase todo o Tractatus seja ele próprio destituído de sentido, se o que afirma for verdade.
O Primeiro Wittgenstein reconhecia isto, dizendo que só se de alguma maneira já soubéssemos o que ele queria dizer poderíamos compreender o seu livro; e que a sua filosofia era como uma escada que deitamos fora depois de a subirmos. Muitas pessoas interpretaram a metáfora literalmente. A última frase do livro resume a ideia: “Do que um homem não pode falar, tem um homem de fazer silêncio”; ou, para o especialista instantâneo realmente ambicioso: “Wovon man nicht sprechen kann, darüber muß man schweigen.”
Depois disso, Wittgenstein deixou a filosofia por uns tempos, convencido de que já tinha dito tudo. Contudo, acabou mais tarde por mudar de ideias: este é o ponto crucial em que o Primeiro Wittgenstein se torna no Segundo Wittgenstein, e, enquanto tal, a segunda figura (depois do Primeiro Wittgenstein) verdadeiramente influente da filosofia do período entre as duas guerras.
No Tractatus, Wittgenstein pensava que as proposições tinham significado porque eram como imagens dos fatos que referem. Mas o Segundo Wittgenstein discordava disto, assimilando ao invés o significado ao uso, concedendo ainda que a linguagem comum era mais complexa (e mais rica em significado) do que o Primeiro Wittgenstein pensava. O resultado póstumo disto é a sua obra Investigações Filosóficas. Morreu em 1951; desde essa altura, têm aparecido regularmente, em publicação póstuma, apontamentos, registros de aulas, listas de compras, notas que escrevia à senhoria, etc., dando a Wittgenstein a distinção extraordinária de ter escrito apenas um livro em toda a sua vida, mas mais ou menos quinze depois de morto. E tudo leva a crer que a sua atividade editorial póstuma está para durar.
autor: Jim Hankinson
tradução: Desidério Murcho
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